quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Escolhendo Nosso Universo




O povo bacuba, da África Central, conta que, no princípio, havia apenas escuridão, água e o grande deus Bumba. Um dia, Bumba, em consequência de uma dor de estômago, vomitou o Sol. Então, o Sol secou um pouco da água, e apareceu a terra seca. Mas as dores de Bumba continuavam, e ele vomitou ainda mais. Assim surgiram a Lua, as estrelas, e então alguns animais – o leopardo, o crocodilo, a tartaruga e, finalmente, o homem. Os maias, do México e América Central, também falam de um tempo anterior à criação, quando tudo o que existia era o mar, o céu e o Artífice. Este, infeliz porque ninguém o louvava, criou a terra, as montanhas, as árvores e a maior parte dos animais. Porém, os animais não falavam, e, portanto, decidiu criar os humanos. Primeiramente os fez de lama e terra, mas só falava asneiras. Assim, deixou que se dissolvessem, e recriou a humanidade, desta vez feita de madeira. Mas essas pessoas não eram inteligentes. Assim, decidiu destruir sua obra mais uma vez, mas eles escaparam para a floreta e foram danificados durante a fuga, mudando ligeiramente e tornando-se os macacos de hoje. Após esse fiasco, o Artífice finalmente encontrou uma fórmula que funcionava, e construiu os primeiros humanos com milho branco e amarelo. Atualmente, produzimos etanol do milho, ma até agora ainda não chegamos aos pés do Artífice, que produziu os humanos que o bebem.

Mitos de criação como esses são tentativas de responder à questão feita neste período do blog: por que há um universo, e por que o universo é do jeito que é? Nossa capacidade de lidar com essas questões cresceu continuamente nos séculos desde os gregos antigos, e mais profundamente nos últimos séculos. Armados com os recursos dos artigos anteriores, agora estamos prontos para oferecer uma possível resposta a essas questões.

Algo que a humanidade parece ter reconhecido, mesmo nos primórdios, é que ou o universo foi uma criação muito recente, ou os seres humanos têm existido apenas durante uma fração menor da história cósmica. Isso porque nossa espécie tem aprimorado tão rapidamente seu conhecimento e tecnologia que, se existíssemos há milhões de anos, já teríamos alcançado um grau de domínio sobre os mistérios do universo muito maior que o atual.

Segundo o Velho Testamento, Deus criou Adão e Eva apenas seis dias depois da criação do mundo. O bispo Ussher, primaz de toda a Irlanda de 1625 a 1656, estabeleceu a origem do mundo com uma grande precisão, às nove da manhã do dia 27 de outubro de 4004 a.C. Aqui adotamos um outro ponto de vista: os humanos são uma criação recente, mas o universo começou mais cedo, cerca de 13,7 bilhões de anos atrás.

A primeira evidência científica de que o universo teve um início surgiu nada década de 1920. Como disse no 3º artigo, nessa época a maioria dos cientistas acreditava que o universo era estático e que sempre tinha existido. A evidência contra essa ideia era indireta, baseada nas observações feitas por Edwin Hubble com o telescópio de cem polegadas no monte Wilson, nas colinas acima de Pasadena, Califórnia. Pela análise do espectro de luz emitido por galáxias, Hubble descobriu que essas galáxias se afastavam de nós, e quanto mais distante a galáxia maior a velocidade de recessão. Em 1929, publicou uma lei relacionando a velocidade de recessão à distância das galáxias até nós, e concluiu que o universo estava em expansão. Se isso for verdadeiro, o universo deve ter sido menor no passado. De fato, se extrapolarmos ao passado distante, toda matéria e energia do universo estaria concentrada em uma região diminuta de densidade e temperatura inimagináveis, e, se formos ainda mais longe, haveria o tempo em que tudo começou – o evento que atualmente denominamos big bang.

A ideia de que o universo está em expansão envolve um pouco de sutileza. Por exemplo, não quer dizer que o universo esteja se expandindo do mesmo modo que expandimos uma casa, derrubando uma parede e construindo um banheiro onde antes havia um magnífico carvalho. Em vez de estender o próprio espaço, é a distância entre pontos dentro do universo que está aumentando. Essa ideia emergiu na década de 1930 no meio de muita controvérsia, mas um dos melhores meios de visualizá-la ainda é uma metáfora enunciada em 1931 pelo astrônomo da Universidade de Cambridge, Arthur. Ele disse que o universo pode ser visualizado como a superfície de um balão sendo inflado, e as galáxias como pontos nessa superfície. Essa imagem ilustra claramente por que as galáxias mais distantes afastam-se de nós mais rapidamente. Por exemplo, se o raio do balão dobrar a cada hora, a distância entre duas galáxias do balão também dobrará a cada hora. Se, em algum momento, duas galáxias estiverem a um centímetro uma da outra, uma hora mais tarde estarão separadas por dois centímetros, e parecerá que se movem uma em relação à outra a um centímetro por hora. Mas, se duas galáxias começarem separadas por dois centímetros, uma hora mais tarde estarão separadas por quatro centímetros, e parecerá que se afastam uma da outra a uma velocidade de dois centímetros por hora. É exatamente o que Hubble encontrou: quanto mais distante a galáxia, mais rapidamente ela se afasta.


Universo balão. As galáxias distantes se afastam de nós como se todo o cosmos estivesse na superfície de um balão.


É importante perceber que a expansão do espaço não afeta o tamanho de objetos materiais como galáxias, estrelas, maçãs, átomos ou outros objetos unidos por algum tipo de força. Por exemplo, se circunscrevermos um aglomerado de galáxias no balão, esse círculo não se expandirá junto com o balão. Na verdade, seu tamanho e configuração se mantêm enquanto o balão se expande porque o círculo e galáxias dentro dele são mantidos ligados pela força gravitacional. Esse ponto é importante porque podemos detectar a expansão somente se nossos instrumentos de medida mantêm um tamanho fixo. Se tudo pudesse se expandir, nossas réguas, nosso laboratórios e assim por diante, tudo se expandiria proporcionalmente e não se notaria qualquer diferença.

A expansão do universo foi uma novidade para Einstein. Mas a possibilidade de que as galáxias se afastassem uma das outras havia sido proposta alguns anos antes dos artigos de Hubble, em bases teóricas decorrentes das próprias equações de Einstein. Em 1922, o físico e matemático russo Alexander Friedmann investigou o que aconteceria em um modelo do universo baseado em duas suposições que simplificariam enormemente a matemática: que o universo parecesse idêntico em todas as direções, e que ele aparecesse assim a partir de qualquer ponto de observação. Sabemos que a primeira suposição de Friedmann não é exatamente correta – felizmente o universo não é uniforme em toda parte! Se olharmos para cima numa direção, veremos o Sol, em outra, a lua ou uma colônia de morcegos vampiros migrando. Mas o universo parece aproximadamente o mesmo em todas as direções quando visto numa escala muito maior – maior até mesmo do que a distância entre galáxias. É semelhante a olharmos para uma floresta. Se estivermos próximos o suficiente, podemos distinguir folhas individuais ou, pelo menos, árvores e os espaços entre elas. Mas, se estivermos tão no alto que nosso polegar cubra um quilômetro quadrado de árvores, a floresta parecerá uma extensão uniforme. Poderíamos dizer que, nessa escala, a floresta é uniforme.

Com base nessas suposições, Friedmann foi capaz de achar uma solução às equações de Einstein, na qual o universo se expandia do mesmo modo que Hubble descobriria anos mais tarde. Em particular, o universo no modelo de Friedmann começava com tamanho zero e se expandia até a atração gravitacional desacelerá-lo, até por fim acabar entrando em colapso sobre si mesmo. (Há na verdade outros dois tipos de soluções às equações de Einstein que satisfazem as suposições de Friedmann, uma na qual a expansão de Einstein que satisfazem as suposições de Friedmann, uma na qual a expansão continua para sempre, embora com alguma desaceleração, e outra na qual a expansão decresce lentamente em direção ao zero, porém nunca cessa.) Friedmann morreu alguns anos depois de produzir esse trabalho, e suas ideias permanecerem praticamente ignoradas até a descoberta de Hubble. Mas, em 1927, o professor de física e padre católico George Lamaître propôs uma ideia similar: se retornarmos ao passado da história do universo, ele se torna cada vez mais diminuto até que nos deparamos com um evento de criação – o que hoje chamamos de big bang.

Nem todos gostaram do cenário do big bang. De fato, o próprio termo big bang foi cunhado, com uma conotação pejorativa, em 1949 por Fred Hoyle, que acreditava em um universo que se expandia para sempre. A primeira observação direta apoiando a ideia do big bang somente surgiu em 1965, com a descoberta de um fraco fundo de micro-ondas permeando todo o espaço. Essa radiação cósmica de fundo em micro-ondas, ou CMBR (do inglês Cosmic Microwave Background Radiation), é semelhante à de um forno de micro-ondas, só que muito mais fraca. Podemos observador a CMBR ligando a televisão em um canal não ocupado – uns poucos por cento do chuvisco visto na tela resulta dela. A radiação foi descoberta acidentalmente por dois cientistas da Bell Labs, que tentavam eliminar essa estática da sua antena de micro-ondas. A princípio, pensaram que a estática poderia vir dos dejetos de pombos aninhando-se no instrumento, mas acabaram percebendo que seu problema possuía uma origem muito mais interessante – a CMBR é uma radiação residual do universo primordial muito denso e quente que existiu logo após o big bang. À medida que o universo se expandiu, resfriou-se gradualmente até a radiação tornar-se o fraco remanescente que agora observamos. Atualmente, essas micro-ondas podem aquecer a nossa comida a apenas -270 graus centígrados, não muito úteis para se estourar pipoca.

Os astrônomos também encontraram outros vestígios apoiando o quadro do big bang de um universo primordial quente e minúsculo. Por exemplo, o universo, durante o seu primeiro minuto ou algo assim, teria sido mais quente do que o interior de uma estrela típica. Durante esse período, todo o universo teria agido como um reator nuclear. As reações nucleares teriam cessado quando o universo se expandiu e se resfriou, mas a teoria prevê que teria restado um universo composto principalmente de hidrogênio, mas também com 23 por cento de hélio, e traços de lítio (todos os elementos mais pesados seriam fabricados mais tarde, dentro das estrelas). O cálculo está em bom acordo com os totais observados de hélio, hidrogênio e lítio.

Medidas da abundância de hélio e da CMBR forneceram evidências convincentes em favor do cenário do big bang para o universo muito jovem, mas, embora se possa encarar o big bang como uma descrição válida da história cósmica primitiva, seria incorreto considerar o big bang literalmente, isto é, pensar na teoria de Einstein como fornecendo um quadro real da origem do universo. Isso porque a relatividade geral prevê que haja um ponto no tempo, no qual a temperatura, densidade e curvatura do universo sejam todas infinitas, uma situação chamada pelos matemáticos de singularidade. Para os físicos, nesse ponto a teoria de Einstein sofre uma ruptura e, portanto, não pode ser utilizada para prever como o universo começou, mas somente como ele evoluiu. Assim, embora possamos aplicar as equações da relatividade geral e nossas observações dos céus para conhecermos o universo primitivo, não é correto remontar o quadro do big bang até o começo.

Em breve abordarei o tópico da origem do universo, mas, antes disso, umas poucas palavras sobre a primeira fase da expansão, a chamada inflação. A não ser que você tenha vivido no Zimbábue, onde recentemente a inflação da moeda excedeu 200.000.000 por cento, o termo pode não soar muito explosivo. Mas, mesmo segundo estimativas até conservadoras, durante essa inflação cosmológica o universo expandiu por um fator 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 em 0,00000000000000000000000000000000001 segundo. É como se uma moeda com um centímetro de diâmetro de repente ficasse com dez milhões de vezes o diâmetro da Via Láctea. Tal fato parece violar a relatividade, que impõe que nada se mova com velocidade superior à da luz, mas essa velocidade limite não se aplica à expansão do espaço em si.

A ideia de que tal episódio de inflação possa ter ocorrido foi proposta pela primeira vez em 1980, com base em considerações que vão além da teoria da relatividade geral de Einstein e que levam em conta aspectos da teoria quântica. Como não temos uma teoria quântica completa da gravidade, os detalhes ainda estão sendo trabalhados, e os físicos não têm certeza de como aconteceu a inflação. Mas, segundo a teoria, a expansão causada pela inflação não teria sido completamente uniforme, como prevista pelo cenário tradicional do big bang. Tais irregularidades produziriam minúsculas variações na temperatura da CMBR em diferentes direções. Essas flutuações eram muito pequenas para serem observadas na década de 1960, mas só foram detectadas em 1992, pelo satélite COBE da NASA, e posteriormente medidas pelo seu sucessor, o satélite WMAP, lançado em 2001. Em consequência, agora temos muita confiança de que a inflação realmente ocorreu.

Ironicamente, embora as diminutas variações na CMBR constituam uma evidência da inflação, um razão pela qual ela é um conceito importante é a uniformidade quase perfeita da temperatura da CMBR. Se tornarmos uma parte de qualquer objeto mais quente que os seus arredores, e então aguardarmos, o ponto quente se resfriará e seus arredores se aquecerão até que a temperatura do objeto seja uniforme. Mas esse processo leva tempo, e, se a inflação não tivesse ocorrido, não haveria tempo o suficiente para, durante a história do universo, o fluxo de calor equalizar a temperatura em regiões vastamente separadas, supondo que a velocidade de transferência do calor seja limitada pela velocidade da luz. Um período de expansão muito rápida (muito mais rápida que a velocidade da luz) remedia essa situação porque haveria tempo para ocorrer a equalização no universo jovem pré-inflacionário extremamente diminuto.

A inflação explica o “bang” do big bang, ao menos no sentido de que a expansão que ele representa é muito mais extrema do que aquela prevista pela teoria do big bang tradicional da relatividade geral para o período em que ocorreu a inflação. O problema é que, para os modelos teóricos de inflação funcionarem, o estado inicial do universo tinha que ser arranjado de um modo muito especial e altamente improvável. Assim, a teoria tradicional da inflação resolve uma série de problemas, mas cria um outro – a necessidade de um estado inicial muito específico. Essa questão do tempo zero é eliminada na teoria da criação do universo que descreverei a seguir.

Visto que não podemos descrever a criação empregando a teoria da relatividade geral de Einstein, se quisermos vislumbrar a origem do universo, a relatividade geral deve ser substituída por uma teoria mais completa. A necessidade de uma teoria mais completa persistiria mesmo se a teoria da relatividade geral não sofresse uma quebra, porque esta não leva em conta a estrutura em pequena escala da matéria, que é governada pela teoria quântica. Mencionei no 4º artigo que, na maioria dos propósitos práticos, a teoria quântica não tem muita relevância para o estudo das estruturas de grande escala do universo, porque ela se aplica à descrição na natureza em escalas microscópicas. Mas, se voltarmos o suficiente no tempo, o universo era tão pequeno quanto o comprimento de Planck, um bilionésimo de um trilionésimo de um trilionésimo de centímetro, uma escala na qual a teoria quântica tem que ser levada em conta. Assim, embora não tenhamos uma teoria quântica completa da gravidade, sabemos com certeza que a origem do universo foi um evento quântico. Em consequência, assim como combinamos teoria quântica e relatividade geral, ao menos de um modo provisório, para derivar a teoria da inflação, se quisermos ir ainda além e compreender a origem do universo, devemos combinar o que sabemos da relatividade geral com teoria quântica.


Dobra do espaço. Massa e energia dobram o espaço, alterando as trajetórias dos objetos.


Para ver como isso funciona, precisamos entender o princípio de que a gravidade dobra o espaço e o tempo. A dobra do espaço é mais fácil de visualizar do que a do tempo. Imagine o universo como a superfície de uma mesa de bilhar plana. A superfície da mesa é um espaço plano, ao menos em duas dimensões. Se você jogar uma bola na mesa, ela vai rolar em linha reta. Mas se a mesa tiver depressões ou calombos em alguns locais, como ilustrado na figura acima, a bola fará uma curva.

É fácil ver que a mesa de bilhar sofre uma dobra nesse exemplo porque ela está curvada numa terceira dimensão exterior, que podemos ver. Dado que não podemos sair do nosso espaço-tempo para ver sua dobra, é mais difícil imaginar a dobra do espaço-tempo do nosso universo. Mas a curvatura pode ser detectada mesmo se não pudermos nos afastar e a virmos de perspectiva de um espaço maior. Ela pode ser detectada de dentro do próprio espaço. Imaginemos uma microformiga confinada à superfície da mesa. Mesmo não sendo capaz de abandonar a mesa, ela poderá detectar a dobra por uma cartografia cuidadosa das distâncias. Por exemplo, a distância ao redor de um círculo no espaço plano é sempre um pouco maior do que três vezes o seu diâmetro (ou seja, o número pi). Mas, se a formiga atravessar um círculo que contenha a depressão na mesa, perceberá que a distância atravessada é maior do que a esperada, maior do que um terço da distância ao redor da depressão. De fato, se a depressão for profunda o suficiente, a formiga poderá descobrir que a distância em torno do círculo é mais curta do que a distância através dele. O mesmo ocorre com a dobra do nosso universo – ele estica ou comprime a distância entre os pontos do espaço, mudando sua geometria, ou forma, de um modo mensurável de dentro do próprio universo. A dobra do tempo estica ou comprime intervalos de tempo de um modo análogo.


Dobra do espaço-tempo. Massa e energia dobram o espaço-tempo e fazem com que a dimensão do tempo se “misture” às dimensões espaciais.


Com auxílio dessas ideias, vamos retornar à questão do início do universo. Podemos falar separadamente do espaço e do tempo, como fizemos na discussão acima, em situações envolvendo velocidades baixas e gravidade fraca. Em geral, contudo, tempo e espaço podem tornar-se entrelaçados, e assim sua distensão e compressão também envolvem um certo grau de mistura. Essa mistura é importante no universo primordial e é a chave para se compreender o início do tempo.

A questão do início do tempo é um pouco como a da borda do mundo. Quando as pessoas acreditavam que o mundo era plano, poderiam se perguntar se o mar não se derramaria de sua borda. Isso foi testado experimentalmente: podemos dar a volta ao mundo sem despencarmos. O problema da borda foi resolvido quando se percebeu que o mundo não era uma placa plana, mas uma superfície curva. O tempo, contudo, parece ser como uma típica linha de trem. Se ele teve um início, teria que haver alguém (isto é, Deus) para colocar o trem em movimento. Embora a teoria da relatividade geral de Einstein unificasse tempo e espaço no espaço-tempo e envolvesse uma certa mistura dos dois, o tempo ainda era diferente do espaço; então, ou tinha um início e um fim, ou prosseguia para sempre. Contudo, ao adicionarmos os efeitos da teoria quântica à teoria da relatividade, em casos extremos pode ocorrer uma dobra tão exagerada que o tempo se comporta como outra dimensão espacial.

No universo primordial – quando o universo era pequeno o suficiente para ser governado tanto pela relatividade geral quanto pela teoria quântica – havia efetivamente quatro dimensões espaciais e nenhuma temporal. Isso significa que, quando falamos do “início” do universo, estamos contornando a questão sutil de que, ao olharmos para trás, para um universo muito, muito jovem, o tempo como o conhecemos não existe! Devemos aceitar que nossas concepções habituais de espaço e tempo não se aplicam ao universo extremamente jovem. Isso pode estar além da nossa experiência, mas não da nossa imaginação ou da nossa matemática. Se no universo primordial todas as quatro dimensões se comportam como o espaço, o que acontece com o início do tempo?

A percepção de que o tempo pode se comportar como outra dimensão do espaço implica que podemos nos livrar do problema do início do tempo, de um modo semelhante a como nos livramos do problema da borda do mundo. Suponha o início do universo como o pólo sul da Terra, com os graus de latitude desempenhando o papel do tempo. Movendo-se rumo ao norte, os círculos de latitude, representando o tamanho do universo, expandem-se. O universo começaria como um ponto no polo sul, mas o polo sul é um ponto como outro qualquer. Perguntar o que acontecia antes do início do universo se tornaria uma questão sem sentido, porque não há nada ao sul do polo sul. Nesse cenário, o espaço-tempo não tem contorno – as mesmas leis aplicam-se ao polo sul assim como a outros lugares. De um modo análogo, quando se combina a teoria da relatividade geral com a teoria quântica, a questão do que acontecia antes do início do universo perde o sentido. A ideia de que histórias poderiam ser superfícies fechadas sem contorno é a chamada condição sem-contorno.

Ao longo dos séculos, muitos pensadores, incluindo Aristóteles, acreditaram que o universo deveria ter sempre existido, evitando a questão de como ele surgiu. Outros acreditavam que o universo teve um início, e usavam isso como um argumento para a existência de Deus. A percepção de que o tempo comporta-se como o espaço apresenta uma nova alternativa. Ela remove a antiga objeção ao universo ter um início, mas também implica que a origem do universo foi governada por leis científicas, em vez de ser a obra de algum deus.

Se a origem do universo foi um vento quântico, ela deveria ser descrita acuradamente pela soma sobre as histórias de Feynman. Contudo, aplicar a teoria quântica a todo o universo – onde os observadores são parte do sistema observado – é algo delicado. No 4º artigo, vimos como partículas lançadas contra uma tela com duas fendas podem exibir padrões de interferência como os das ondas na água. Feynman mostrou que isso ocorre porque uma partícula não tem uma história única. Ou seja, quando ela se move de um ponto inicial A para um ponto final B, não segue uma trajetória definida, mas antes toma simultaneamente todos os caminhos conectando os dois pontos. Desse ponto de vista, o padrão de interferência não é uma surpresa, porque, por exemplo, a partícula pode atravessar ambas as fendas ao mesmo tempo e interferir nela própria. Aplicado ao movimento de uma partícula, o método de Feynman impõe que, para calcular a probabilidade de um ponto final específico, deve-se considerar todas as possíveis histórias que a partícula poderia seguir desde seu ponto de partida até o ponto final. Pode-se também usar o método de Feynman para calcular as probabilidades quânticas de observações do universo. Se for aplicado ao universo como um todo, não existem em ponto A, e assim somamos todas as histórias que satisfazem à condição sem-contorno e terminam no universo como observado atualmente.

Dentro desse quadro, o universo apareceu espontaneamente, começando de todo modo possível. A maior parte desses modos corresponde a outros universos. Enquanto alguns universos são parecidos com o nosso, a maioria é inteiramente diferente. Eles não são diferentes em apenas alguns detalhes, tais como se Elvis realmente morreu jovem ou se nabos serviriam como sobremesa, mas antes diferem mesmo em suas aparentes leis naturais. De fato, existem muitos universos com muitos conjuntos de leis físicas. Alguns fazem um grande mistério com essa ideia, às vezes denominada conceito do multiverso, mas são apenas expressões distintas da soma sobre as histórias de Feynman.


Multiverso. Flutuações quânticas levam à criação de minúsculos universos a partir do nada. Uns poucos desses atingem um tamanho crítico, e então se expandem de um modo inflacionário, formando galáxias, estrelas, e, ao menos em um caso, seres como nós.


Para ilustrar esse ponto, vamos alterar a analogia do balão de Eddington e imaginar o universo em expansão como a superfície de uma bolha. Nosso quadro da criação quântica espontânea do universo é um ouço como a formação de bolhas de vapor em água fervente. Muitas bolhas minúsculas aparecem e então desaparecem. Essas seriam como miniuniversos que se expandem, mas entram em colapso enquanto ainda têm um tamanho microscópico. Representam possíveis universos alternativos, mas não geram muito interesse porque não duram o suficiente para desenvolver galáxias e estrelas, e muito menos vida inteligente. Umas poucas bolhinhas, contudo, crescem o suficiente para evitar o colapso. Elas continuarão a se expandir numa taxa cada vez maior e formarão as bolhas de vapor que podemos ver. Essas correspondem aos universos que passaram a se expandir numa taxa cada vez maior – em outras palavras, a universos num estado de inflação.


O fundo de micro-ondas. Essa imagem do céu foi criada com sete anos de dados do WMAP, no release de 2010. Revela flutuações de temperatura – exibidas como diferenças de cor – datando de 13,7 bilhões de anos atrás. As flutuações representadas correspondem a diferenças de temperatura de menos de um milésimo de grau centígrado. Mesmo assim, elas são as sementes das quais cresceram as galáxias.


Como dissemos, a expansão causada pela inflação não pode ser completamente uniforme. Na soma sobre as histórias, há somente uma história completamente uniforme e regular, e é a que tem a probabilidade mais alta, mas há muitas outras histórias que são apenas ligeiramente irregulares e têm probabilidades quase tão altas. É por isso que a inflação prevê que o universo primordial é ligeiramente não uniforme, correspondendo às pequenas variações de temperatura observadas no CMBR. As irregularidades no universo primordial são afortunadas para nós. Por quê? Homogeneidade é uma coisa boa se não queremos a nata nadado sobre o leite, mas um universo uniforme seria muito tedioso. As irregularidades do universo primordial são importantes porque, se algumas regiões tivessem uma densidade ligeiramente mais alta do que outras, a atração gravitacional da densidade extra desaceleraria sua expansão em relação aos arredores. Como a força gravitacional lentamente agrega a matéria, esta poderá acabar entrando em colapso para formar galáxias e estrelas, depois levando à formação de planetas e, ao menos em um caso, de gente. Então, olhe com carinho o mapa do céu em micro-ondas. É o projeto de toda a estrutura do universo. Somos produtos de flutuações quânticas do universo primordial. Se você for religioso, poderá dizer que Deus realmente joga dados.

Essa ideia levou a uma concepção do universo profundamente distinta da tradicional, exigindo que ajustemos o modo como pensamos sobre a história do universo. Para fazer previsões em cosmologia, precisamos calcular as probabilidades de diferentes estados de todo o universo no tempo presente. Em física, normalmente supõe-se algum estado inicial para um sistema, que se faz evoluir no tempo, empregando as equações matemáticas relevantes. Dado o estado do sistema em um certo tempo, tenta-se calcular a probabilidade de que o sistema esteja em algum estado diferente mais tarde. A suposição habitual em cosmologia é que o universo tenha uma única história definida. Pode-se então usar as leis da física para calcular como essa história se desenvolve no tempo. Essa é a chamada abordagem bottom-up (de baixo para cima) em cosmologia. Mas, já que devemos considerar a natureza quântica do universo como expressa pela soma sobre as histórias de Feynman, a amplitude de probabilidade de que o universo esteja agora num estado particular é obtida pela adição das contribuições de todas as histórias que satisfazem a condição sem-contorno e terminam no estado em questão. Em outras palavras, em cosmologia não se poderia seguir a história do universo de baixo para cima, porque então se suporia que há uma única história, com um ponto de partida e uma evolução bem-definidas. Em vez disso, podemos retraçar a história do universo de cima para baixo (top-down), ou seja, ir para atrás partindo do tempo presente. Algumas histórias serão mais prováveis que outras, e a soma normalmente será dominada por uma única história, que começa com a criação do universo e culmina no estado sob consideração. Mas haverá diferentes histórias para diferentes estados possíveis do universo no tempo presente. Isso tudo leva a uma visão radicalmente diferente da cosmologia e da relação causa-efeito. As histórias que contribuem à soma de Feynman não têm existência independente, mas dependem do que está sendo medido. Criamos a história pela nossa observação, em vez de a história nos criar.

A ideia de que o universo não tem uma história única independente do observador pode parecer estar em conflito com alguns fatos que conhecemos. Pode haver uma história na qual a Lua é feita de queijo roquefort. Mas observamos que a Lua não é feita de queijo. Má notícia para os ratos. Desse modo, histórias nas quais a Lua é feita de queijo não contribuem ao estado presente do nosso universo, embora possam contribuir a outros. Pode parecer ficção científica, mas não é.

Uma importante implicação da abordagem top-down é que as leis aparentes da natureza dependem da história do universo. Muitos cientistas acreditam que haja uma única teoria que explique tanto essas leis quanto as constantes físicas da natureza, tais como a massa do elétron ou a dimensionalidade do espaço-tempo. Mas a cosmologia top-down impõe que as leis aparentes do universo sejam diferentes para diferentes histórias.

Considere a dimensão aparente do universo. Segundo a teoria-M, o espaço-tempo tem dez dimensões espaciais e uma temporal. A ideia é que sete dimensões espaciais estão tão enroladas que nem as notamos, deixando-nos com a ilusão de que tudo o que existe são as três dimensões extensas restantes, familiares a nós. Uma das questões centrais da teoria-M em aberto é: por que, em nosso universo, não há mais dimensões extensas, e por que há dimensões enroladas?

Muitos gostariam de acreditar que haja algum mecanismo que faça com que todas as dimensões espaciais exceto três se enrolem espontaneamente. Ou, talvez todas as dimensões tenham começado enroladas, e, por alguma razão compreensível, três dimensões se estenderam, mas não o restante. Parece, contudo, que não há nenhuma razão dinâmica para que o universo pareça quadrimensional. Em vez disso, a teoria top-down prevê que o número de dimensões espaciais extensas não é fixado por nenhum princípio físico. Haverá uma amplitude de probabilidade quântica para cada número de dimensões espaciais extensas de zero a dez. A soma de Feynman admite todas elas, para toda história possível do universo, mas a observação de que nosso universo tem três dimensões espaciais extensas seleciona a subclasse de histórias que têm a propriedade observada. Em outras palavras, a probabilidade quântica de que o universo tenha mais ou menos três dimensões é irrelevante porque já determinamos que estamos em um universo com três dimensões espaciais extensas. Assim, enquanto a amplitude de probabilidade para três dimensões espaciais extensas não for exatamente zero, não importa quão pequena ela seja em comparação com a amplitude de probabilidade para outros números de dimensões. Seria como perguntar qual a amplitude de probabilidade para que o atual papa seja chinês. Sabemos que ele é alemão, ainda que a probabilidade de que ele seja chinês seja maior porque há mais chineses do que alemães. Similarmente, sabemos que nosso universo exibe três dimensões espaciais extensas, e mesmo que outros números de dimensões espaciais extensas possam ter uma maior amplitude de probabilidade, estamos interessados apenas em histórias com três.

E as dimensões enroladas? Lembre-se de que, na teoria-M, o formato preciso das restantes dimensões enroladas, o espaço interno, determina tanto os valores das quantidades físicas, tais como a carga do elétron, quanto a natureza das interações entre partículas elementares, isto é, as forças da natureza. Tudo teria funcionado muito bem se a teoria-M admitisse apenas uma forma para as dimensões enroladas, ou talvez umas poucas, com todas exceto uma podendo ser excluídas de algum modo, deixando-nos somente com uma possibilidade para as leis naturais aparentes. Em vez disso, há amplitudes de probabilidade para talvez tanto quanto 10500 diferentes espaços internos, cada um resultando em diferentes leis e valores das constantes físicas.

Se a história do universo for construída de baixo para cima (bottom-up), não há razão pela qual o universo deva acabar com o espaço interno para as interações entre partículas que observamos de fato, o modelo padrão (das interações entre partículas elementares). Mas na abordagem top-down, aceita-se que o universo exista com todos os possíveis estados internos. Em alguns universos, os elétrons podem ter o peso de bolas de golfe e a força da gravidade pode ser mais forte do que a do magnetismo. No nosso, aplica-se o modelo padrão, com todos os seus parâmetros. Pode-se calcular a amplitude de probabilidade para o espaço interno que conduz ao modelo padrão com base na condição sem-contorno. Como é o caso da probabilidade de haver um universo com três dimensões espaciais extensas, não importa quão pequena essa amplitude seja em relação a outras possibilidades porque já observamos que o modelo padrão é o que descreve nosso universo.

A teoria que descrevemos neste artigo é testável. Nos exemplos anteriores enfatizamos que as amplitudes de probabilidade relativas de universos radicalmente diferentes não importam, assim como aqueles com um número diferente de dimensões espaciais extensas. As amplitudes de probabilidade relativas de universos vizinhos (isto é, similares), contudo, são importantes. A condição sem-contorno implica que a amplitude de probabilidade é mais alta para histórias nas quais o universo começa completamente uniforme. A amplitude é reduzida para universos que são mais irregulares, o que implica que o universo primordial deve ter sido quase uniforme, com pequenas irregularidades. Como já assinalamos, podemos observar essas irregularidades como pequenas variações nas micro-ondas provenientes de várias direções do céu. Descobriu-se que elas concordam com as linhas gerais do modelo inflacionário; contudo, necessitamos medidas mais precisas para diferenciar totalmente a teoria top-down de outras, e para apoiá-la ou refutá-la. Essas observações podem bem ser conduzidas com satélites no futuro.

Centenas de anos atrás, pensava-se que a Terra era única, situada no centro do universo. Atualmente, sabemos que há centenas de bilhões de estrelas em nossa galáxia, uma grande porcentagem delas com planetas, e centenas de bilhões de galáxias. Os resultados descritos neste artigo indicam que nosso universo é também um entre muitos, e que suas leis aparentes não são determinadas de modo único. Isso pode desapontar aqueles que ansiavam por uma teoria final, uma teoria de tudo, que preveria a natureza da física do dia a dia. Não podemos prever características discretas como o número de dimensões espaciais extensas ou o espaço interno que determinas quantidades físicas que observamos (isto é, a massa e a carga do elétron e de outras partículas elementares). Em vez disso, usamos esses números para selecionar quais histórias contribuem à soma de Feynman.

Parece que estamos num ponto crítico da história da ciência, no qual devemos modificar nossa concepção dos objetivos e do que torna uma teoria física aceitável. Aparentemente, nem números fundamentais ou sequer a forma das leis aparentes da natureza são determinados pela lógica ou por um princípio físico. Os parâmetros podem admitir tantos valores, e as leis físicas tantas formas compatíveis com uma teoria matemática autoconsistente, que outros valores e outras formas realmente são admitidos em outros universos. Isso pode não satisfazer nosso desejo humano de sermos especiais ou descobrirmos um belo pacote que contenha todas as leis da física, mas esse parece ser o jeito da natureza.

Parece haver uma vasta paisagem de possíveis universos. Contudo, como veremos no próximo artigo, universos nos quais vida como a nossa possa existir são raros. Vivemos em um universo onde a vida é possível, mas se ele fosse apenas ligeiramente diferente, seres como nós não poderiam existir. O que podemos deduzir dessa sintonia fina? Seria a evidência de um universo cujo projeto devemos a um criador benevolente? Ou a ciência oferece outra explicação?


1º Artigo: O Mistério do Ser
2º Artigo: O Domínio da Lei
3º Artigo: O Que é a Realidade?
5º Artigo: A Teoria de Tudo




Referência: Readaptação de The Grand Design de Leonard Mlodinow e Stephen Hawking

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